Uma pessoa não se cansa de ler o discurso em que o político Cavaco
Silva quis fazer prova de vida. A delícia começa logo na primeira frase:
"Na semana passada, fomos confrontados, de forma inesperada, com uma grave
crise política." Logo agora, que os partidos da coligação andavam a dar-se
tão bem e nem tinha havido dois orçamentos inconstitucionais. E os resultados
da governação? Joia. Aliás, os portugueses não podiam estar mais satisfeitos:
tudo como deus com os anjos - é ver aquela salva de palmas na tomada de posse
(ou será coroação?) do patriarca.
O segundo parágrafo também encanta: os portugueses, diz o político
belenense, ficaram a saber o que sucede "quando se associa uma crise
política à crise económica e social". Faltou acrescentar: "Os que
nasceram depois de março de 2011, ou andaram perdidos no espaço." Ah, mas
espera: esta crise é diferente das outras. E é por isso que não deve haver
eleições antecipadas em setembro: porque teríamos um Governo de gestão durante dois
meses e se isso sucedesse o mais certo, apesar de estar tudo tão no bom
caminho, era levarmos com um segundo resgate (levar com o primeiro foi ginjas),
além de que há "grande tensão e crispação entre as forças
partidárias", pelo que seria difícil sair das urnas um Governo com
consistência e solidez". Portanto, que sugere este político que foi dez
anos PM depois de uma dissolução do Parlamento pelo então presidente Soares,
que é PR há sete tendo feito tudo para que Sócrates se demitisse, e que ainda
na semana passada, entre a demissão de Gaspar e a de Portas, certificou que
quem manda governos abaixo é e só pode ser a Assembleia da República? Que deve
haver eleições antecipadas não dentro de dois mas de 11 meses. E um acordo
entre os partidos do Governo e o PS quanto ao rumo a seguir nos próximos anos -
para isso a "grande tensão e crispação entre as forças partidárias"
já não é problema, portanto.
Já quase tudo foi dito sobre esta proposta de um político que fala dos
"agentes políticos" como se não fosse um deles; que andou os últimos
dias a gozar com Passos e Portas (sendo bem merecido, é abjeto); que na prática
demitiu o primeiro-ministro ao mesmo tempo que afirma manter o Executivo
"a plenitude das funções"; que lançou o País numa campanha eleitoral
de um ano apesar de querer transformar as eleições numa farsa; que trata dois
partidos com assento parlamentar e mais de 20% dos votos como irrelevantes; que
é difícil imaginar um cenário de maior confusão e instabilidade que o
resultante deste pronunciamento. Mas talvez o mais saboroso de tudo seja que,
ao propor o recurso a "uma personalidade de reconhecido prestígio que
promova e facilite o diálogo" entre partidos, Cavaco esteja a assumir que
não pode ser ele a fazer esse papel - que é o de Presidente. Não era que não
soubéssemos; não sabíamos era que ele tinha noção.
por FERNANDA CÂNCIO, no DN
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