Se o Governo fosse um produto transacionável,
a ASAE já o teria removido das prateleiras da democracia e responsabilizado os
partidos da maioria parlamentar que o suportam. Apesar de um prazo de validade
nominal de quatro anos, este "produto" começou a dar sinais de
degradação ao fim de apenas um ano, acabando por apodrecer ao fim de dois, isto
é, apenas a meio do prazo.
Olhemos para o Governo da República a partir
de três dimensões que caracterizam um produto organizacional: orgânica, missão
e liderança.
Na linha da deriva populista e irrefletida que
norteou o período pós-eleitoral de 2011, o primeiro-ministro desenhou um
Governo de orgânica minimalista, com apenas 11 ministros. A gestão de um país
num mundo moderno, onde os tempos são difíceis e os problemas complexos, exige
equipas de dimensão adequada. Por exemplo, o Governo finlandês, que tomou posse
também em 2011, tinha 19 ministros. Como seria de esperar, o Governo tornou-se
numa máquina enferrujada, quase paralisada. Qualquer principiante teria
percebido que não se faz um Governo com menos de 15 ministros.
A missão - governar - inscreve-se sempre no
quadro de uma visão e de uma orientação ideológica. Sabia-se da predileção de
Passos Coelho pela linha mais liberal do tipo "quanto menos Estado,
melhor". A este pressuposto acresceu uma crença inamovível nos méritos da
austeridade extrema, uma espécie de trilho perfeito ao longo do qual a economia
afundaria por um tempo curto, tudo o que era ativo tóxico (empresas,
instituições, pessoas) desapareceria e, na sequência, uma esplendorosa
primavera, aí pela metade do mandato, daria vida a uma robusta recuperação, com
os mercados e a Europa ajoelhados ao milagre português.
Assim não foi, como qualquer economista médio
anteciparia, porque não há crescimento sem investimento. O primado das finanças
sobre a economia imposto pela dupla Gaspar-Coelho resultou no decréscimo do
PIB, no aumento dos impostos, do desemprego e da dívida, no descontrolo do
défice e, por fim, na constatação de que as yields não desceram após todo este
esforço. O Governo falhou na missão.
A liderança, corporizada pelo primeiro e pelos
restantes ministros, deixou dúvidas desde o primeiro dia. Entregar
megaministérios a governantes inexperientes, sem peso político para se imporem
perante os pares e sem o conhecimento necessário para trabalharem com os atores
da sociedade e da economia é, naturalmente, erro de principiante. Mas o melhor
diagnóstico deste elenco ministerial foi a imagem derrotada e acabrunhada da
bancada do Governo no debate do estado da Nação de sexta-feira. Ministros que
não se olhavam, um ministro demissionário que ao que parece tinha já arrumado o
gabinete, outro que tem guia de marcha para ser substituído, outra que poderá
ver o seu Ministério partido a meio, enfim, uma vergonha para a nossa
democracia.
A ASAE é, neste caso, o presidente da
República. E, ao contrário da atenta e diligente ASAE da vida real, Cavaco
Silva foi dando espaço a um produto em decadência, ao ponto de, quando
finalmente a podridão se manifestou de dentro para fora, ver o seu espaço de
manobra muito limitado. O caminho, por muito que custe ao presidente, será
fatalmente uma eleição antecipada, quanto antes, melhor. Porque em democracia
não há artifício político que contorne o sufrágio. Tem consequências na
execução do plano de assistência? Certamente que sim. Mas se há dois anos foi
possível juntar as três principais forças políticas e negociar um memorando com
a troika num quadro de eleições antecipadas, não vejo por que razão não se pode
agora renegociar o programa de ajuda, envolvendo as mesmas forças, partindo
para um ato eleitoral que nos traga um Governo mais capaz.
Vale aqui recordar o famoso artigo de Cavaco
escrito em 2004, no qual recuperou a lei de Gresham para estabelecer o paralelo
entre a má moeda que expulsa a boa moeda e os políticos incompetentes que
expulsam os políticos competentes. O professor alertava à data para a
necessidade de inverter este efeito. Pois bem, esta é a hora de, na primeira pessoa,
o agora presidente protagonizar aquilo que no passado defendeu: substituir o
mau produto, fora de prazo, por um outro com validade.
José Mendes, no JN
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