As notícias desta semana sobre as bases do
Orçamento do Estado para 2014 são o corolário de uma apaixonada adesão do
Governo português à ditadura da austeridade. Na sua azáfama de cortar em tudo o
que mexe, Passos e Portas subestimam o facto de terem já cumprido duas das três
etapas do ciclo de vida de uma ditadura: a ideologia e a tortura. Falta mesmo
só a revolução.
Começando pela ideologia. Dizem os livros que
a austeridade é a política de cortar nos orçamentos do Estado para promover o
crescimento. Um conceito demasiado complexo para ser vertido nesta simples
definição. Na verdade, o presente e a história demonstram bem que a austeridade
extrema, ao invés de estimular a economia e elevar os níveis de confiança, tem
frequentemente o efeito contrário. Assim aconteceu nos anos 30 nos EUA e assim
acontece atualmente numa Europa anémica.
Não há nada de errado na reforma do Estado e
na racionalização dos gastos públicos. Simplesmente, tal deve ser feito no conhecimento
dos limites de aplicabilidade de programas de austeridade, de forma a não
comprometer os mecanismos de criação de riqueza e de consumo. Os pecados da
austeridade fundamentalista adotada por Passos Coelho são simples de enunciar.
Desde logo, a perceção de que uma quebra generalizada no consumo imobilizou a
economia. Depois, a certeza de que o impacto das medidas de austeridade é
sempre brutal nos pobres e na classe média e quase não afeta os ricos. Por fim,
aquilo que se designa por "falácia da composição", isto é, a crença -
errada - de que o que é bom para o todo é bom para as partes. Tudo isto
aconteceu em Portugal nos últimos anos, com um Governo manietado por uma troika
apostada em limitar o risco sistémico, protegendo justamente os sistemas de
interesses que estiveram na origem da crise, encabeçados pelo omnipresente
sistema bancário.
A seguir à ideologia vem a tortura. Passado o
"período de instalação", onde a narrativa assentou nos muito
convenientes inimigo (Sócrates) e contexto (resgate), o Governo apontou o seu
arsenal de soluções às vítimas óbvias e fáceis: pensionistas e funcionários
públicos. Poupou os verdadeiros responsáveis pela crise da dívida, o sistema
bancário e os interesses privados que cresceram à sombra do Estado, ajudados por
políticos incompetentes e corruptos, que hoje têm as suas fortunas escondidas
em offshores e bem protegidas da tributação. Optou por montar uma máquina de
ataque aos desprotegidos, adotando técnicas de tortura inqualificáveis. Aos
invés de apresentar ao país um plano global de reforma, onde todos e cada um
soubessem qual seria o seu contributo e as metas a alcançar, atira numa base
quase diária intenções de cortes generalizados nos rendimentos daqueles que, no
passado ou no presente, trabalham para garantir não mais que o suficiente para
pagar despesas e alimentação. E não falo apenas daqueles que ganham 500 euros.
Falo também dos que ganham dois ou três mil, mas que têm três ou quatro filhos
e são tão pobres como os outros.
Não há dia em que não venha de São Bento uma
nova ameaça, numa prática brutal indigna de um governo democrático. Como é
possível que na semana em que se descobre o corte das pensões de sobrevivência,
que cinicamente Paulo Portas escondeu, se acene com o aumento da taxa de
audiovisual? Perceberá o Governo o impacto psicológico sobre os idosos quando
se ataca, ainda que marginalmente, um dos poucos prazeres que podem ainda
suportar, a televisão em canal aberto? A isto chama-se tortura.
O grande final de toda a ditadura é a
revolução. Passos Coelho acredita firmemente na brandura dos portugueses. Eu
acredito que os subestima. Sobretudo o grupo dos reformados e dos funcionários
públicos, que têm sido estigmatizados com base em mentiras redondas vendidas
aos restantes portugueses. Pode ser que a revolução chegue apenas pela via
formal, derrotando Passos num ato eleitoral ordinário ou antecipado. Mas também
pode ser que as vítimas da tortura decidam diferentemente. Que faria Passos se
os funcionários públicos imobilizassem o Estado? Que faria Passos se os idosos
pensionistas entrassem numa greve de fome coletiva? Que faria Passos se uma boa
parte dos portugueses decidisse apresentar-se esta segunda-feira à porta do seu
banco e gerar, logo pela manhã, extensas filas para levantar todas as suas poupanças?
Como diria um funcionário público, daqueles que o primeiro-ministro tanto
odeia, deixo estas notas "à consideração superior".
José Mendes, no JN
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