O
trabalho dos jornalistas não é repetir como factos as opiniões da moda. É
verificar nos factos - na medida em que os factos nos podem dar respostas - a
veracidade de ideias feitas. E, se necessário, desmontá-las. Umas das ideias
feitas mais indiscutíveis em Portugal é esta: temos funcionários públicos a
mais. O peso do Estado é insuportável e é necessário reduzir o número de
trabalhadores e os encargos com eles. E como se bem torturados os números
confessam sempre o que deles quisermos tirar, as provas desta verdade
indesmentível acabam sempre por surgir. E se eles não confessam, inventa-se.
Ainda me recordo de se dizer por aí que os salários dos funcionários públicos
correspondiam a 80% das despesas do Estado, de tal forma a mentira se tornou
banal.
Cumprindo
a sua função, a RTP fez as contas às despesas do Estado. Não precisou mais do
que ir aos números oficiais. Temos cerca de 575 mil funcionários públicos.
Menos do que isto, só em 1991. Chegaram, em 2005, a ser quase 750 mil.
Desde então não parou de descer. Sem que, no entanto, tenha havido um
despedimento coletivo. Ou seja, ao contrário do reza a lenda, Passos Coelho não
chegou ao governo e encontrou um Estado que não parava de engordar. Encontrou
muito menos funcionários públicos do que cinco ou seis anos antes. Encontrou um
Estado que estava a emagrecer há algum tempo. Pela mão do despesista Sócrates.
Que, com exceção daquele aumento em ano de eleições, não se pode dizer que
tenha tratado os funcionários públicos bem.
Os
funcionários públicos representavam, em 2008 (quando eram mais do que hoje),
12,1% da população ativa. A média dos 32 países da OCDE é de 15%. A Dinamarca e
a Noruega aproximam-se dos 30%. Abaixo de nós está, para estragar a dimensão
europeia deste mito, a Grécia.
Mesmo
assim é insustentável. Porque nós não produzimos a riqueza dos dinamarqueses ou
da generalidade dos europeus. Bem, o peso dos vencimentos dos funcionários
públicos, em Portugal, em relação à riqueza produzida é inferior à média da UE
e da zona euro. 10,5% em Portugal, 10,6% na zona euro, 10,8% na União Europeia,
mais de 18% em países como a Dinamarca ou a Noruega. Repito: estamos a falar de
percentagens relativas ao PIB. Ou seja, dizer que os outros têm mais capacidade
para comportar esta despesa não faz qualquer sentido.
Esta
é uma das coisas que mais me perturba nesta crise: a repetição ad nauseam de verdades absolutas que os números e
os factos desmentem. Não, o peso do Estado português, ou pelo menos os custos
com os seus funcionários, não é incomportável para a riqueza que produzimos.
Haverá racionalidade a acrescentar à gestão de pessoal do Estado. Haverá
desperdício. Mas nem há funcionários públicos a mais nem eles ganham acima do
que a nossa produção de riqueza comporta. Os nossos problemas, no Estado, no
privado e na nossa integração europeia, são outros. Os funcionários públicos
são apenas o bode expiatório de políticos incapazes de enfrentar os atrasos
estruturais do País. E um saco de pancada para quem aposta em virar
trabalhadores do privado contra trabalhadores do público para assim não pôr em
causa os verdadeiros privilégios instalados.
Daniel Oliveira, no Expresso
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