Ainda que os valores da transparência e da
participação democrática estejam ausentes do conclave cardinalício e sejam
estranhos, em geral, aos procedimentos internos da Igreja, pela escolha de
Francisco I para a cadeira de Pedro estão os católicos de parabéns e ficou o
Mundo um pouco mais esperançoso. Alguma prodigiosa "iluminação" terá
conduzido os 115 cardeais até "quase o fim do Mundo", ao encontro
deste engenheiro argentino de vida simples e palavra clara, filho de um
emigrante que trocou a Itália de Mussolini pelos horizontes bem mais
prometedores do Novo Mundo. E assim triunfou a inteligência das mudanças
indispensáveis e se demonstrou uma vez mais que Deus pode escrever
"direito por linhas tortas".
Já a transposição desta "prerrogativa
divina" para o mundo profano se afigura, porém, incerta e problemática.
Disso mesmo nos dão conta os 60 subscritores - quase todos residentes na
capital e arredores - do "Manifesto pela Democratização do Regime",
divulgado na passada terça-feira. Ali afirmam que a corrosão dos procedimentos
e das instituições democráticas inibem a capacidade do nosso regime político
produzir verdadeiras alternativas às políticas que arrastaram a governação da
República até à desgraça presente e que bloqueiam quaisquer mudanças que possam
perturbar as oligarquias políticas instaladas ou ameaçar a sua intolerável
promiscuidade com os grandes interesses económicos e financeiros.
Num registo lúcido e cirúrgico, o
"Manifesto" aponta "três passos fundamentais" para consumar
a "rutura" indispensável:
- impor a realização de eleições primárias
efetivamente abertas à participação de todos os simpatizantes, para a escolha
dos candidatos dos partidos "a todos os cargos políticos";
- pôr termo às "listas fechadas" de
candidatos cooptados pela direções partidárias, através da imposição do
"voto nominal" e da extinção do monopólio partidário nas eleições
legislativas;
- adotar regras para o financiamento público
das campanhas eleitorais que garantam a transparência e a equidade entre todos
os concorrentes.
São três passos simples, pertinentes e
razoáveis que não será fácil enjeitar com pretextos expeditos. É um desafio que
os partidos políticos fariam bem em assumir, admitindo que estão conscientes da
gravidade das ameaças e determinados a combater a crescente erosão da confiança
que os cidadãos depositam nas instituições democráticas e que, de forma
veemente, têm vindo a manifestar.
O sucesso meteórico do "Movimento 5
Estrelas" nas recentes eleições italianas constitui um aviso que deve ser
ponderado com a máxima seriedade. Também em Portugal, nos anos oitenta, no
final do último mandato do Presidente Ramalho Eanes, um partido de inspiração
presidencial - o PRD (Partido da Renovação Democrática) - aproveitou o amplo
descontentamento gerado pelas medidas de austeridade impostas pelo FMI e
executadas por um frágil governo de coligação entre o PS e o PSD, obtendo uma
votação nas eleições legislativas de 1985 que, por pouco, quase ultrapassava a
do PS.
O "Manifesto pela Democratização do
Regime" assume uma clara distanciação face à demagogia populista e
antipartidos que marcou a curta história do PRD e o seu desenlace infeliz.
Evidentemente, não há engenharia eleitoral que garanta o acerto das políticas e
a justiça da governação. A longa deriva que lançou os partidos
sociais-democratas no pântano da terceira via e a sua dócil submissão aos
dogmas do mercado preconizados por Margareth Thatcher, Ronald Reagan e George
W. Bush, impediram, desde a era de Tony Blair, a reconstituição das fronteiras
entre a esquerda e a direita, no mundo contraditório que sucedeu à implosão do
império soviético. É por isso indispensável uma alternativa política
substancial, aberta aos novos modos de participação política e mobilizadora de
novas energias.
Pedro Bacelar Vasconcelos, no JN
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