O Governo tem, decidida e definitivamente, um problema com as leis, ou
mesmo com a Lei, tomada aqui como elemento estruturador do Estado de Direito. O
Governo sente-se aprisionado pelas leis, seja por não as entender, seja por não
as querer entender, seja porque as olha como forças de bloqueio, como muros que
não consegue derrubar no caminho que traçou rumo ao desenvolvimento que tarda e
à felicidade que não chega. No fundo, o Governo entende que as leis inúteis só
servem para enfraquecer as leis necessárias, coisa que, sendo acertada na
teoria, tem um problema na prática: quer o Governo decidir o que é inútil e
necessário de acordo com as necessidades do momento?
Subscreve o Governo a
ideia de que as leis são poderosas, é certo, mas mais poderosas são ainda as
necessidades? Os casos práticos dos últimos dias revelam uma tendência
crescente para colocar a cruz no quadrado do "sim". Vejamos.
A lei dos serviços
mínimos atrapalha as intenções do ministro da Educação? O primeiro-ministro diz
que é preciso revê-la, ao mesmo tempo que assiste de cátedra ao incêndio de
consideráveis dimensões que consome o sistema educativo.
A lei que obriga à
reposição do subsídio de férias atrapalha as contas do Governo? Inventa-se
outra para minorar os danos.
As leis em que o
Tribunal Constitucional sustentou o chumbo aos dois últimos orçamentos do
Estado são um incómodo? Extirpe-se o que nelas incomoda.
O caminho é perigoso?
É. Mas, perante a enormidade do confronto entre o Governo e as leis, apenas se
vislumbram duas possibilidades: ou mudam as leis, ou muda o Governo. Verdade
que há uma terceira hipótese: o Governo, por estar em maioria no Parlamento,
pode sempre mudar as leis de que manifestamente não gosta, opção tributária da perigosa
conclusão segundo a qual "vão as leis onde querem os reis".
O meu professor de
Introdução aos Princípios Gerais do Direito disse um dia, perante uma atónita e
tenrinha plateia de alunos, que a lei existe para ser contornada. Percebi anos
mais tarde que o sucesso dos escritórios de advogados está intrinsecamente
ligado a esta capacidade de encontrar no corpo das normas os buracos que
permitem escapar à sua explícita determinação. Pelos milhões de euros que este
negócio rende percebe-se que há gente muito, mas mesmo muito, eficaz e
profissional a tratar de torcer a lei até que ela diga o que convém.
O que,
francamente, nunca pensei ver foi um Governo a dedicar-se a tal exercício,
arriscando pôr em causa uma conquista que custou a alcançar: o primado do
Estado de Direito. Costuma dizer-se que há uma regra imutável no Direito: a lei
é dura, mas é lei. Para este Governo, a lei é moldável. Depende das
circunstâncias. Um perigo, um perigo.
Paulo Ferreira, no JN
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