O primeiro-ministro repetiu, uma e outra vez, como o leitor bem se lembrará, tantas foram as insistências que a austeridade servida numa bandeja aos portugueses era assim porque tinha que ser assim. Isto é: a margem de manobra do Governo era exactamente igual a zero, pelo que, dedução dos incautos, desperdiçar energia a discutir alternativas seria pura perda de tempo. Isto fazia sentido: o aperto é de tal ordem que, supostamente, o Governo teria esticado até ao limite as possibilidades de amenizar o massacre aos nossos bolsos, sobretudo quando cortou salários e subsídios a pensionistas e funcionários públicos. Era o mínimo que se podia pedir ao Executivo de Pedro Passos Coelho: rigor máximo na avaliação e seriedade máxima na decisão.
Verdade: pode sempre dizer-se que abdicar de ouvir conselhos e de negociar com aa Oposição, para alcançar o maior consenso possível, é coisa de que nenhum governo pode abdicar. Essa é a chamada normalidade democrática. Como quase todas, também esta verdade é relativa, na exacta medida em que as circunstâncias não são normais. Em boa verdade, se há coisas que as circunstâncias não permitem é hesitações e ziguezagues, tergiversações e arrecuas.
A firmeza nos propósitos do Governo durou até momento em que, da Igreja ao presidente da República, passando pelos "barões" do PSD que não apreciam Pedro Passos Coelho, se começaram a ouvir críticas aos exageros na austeridade requerida aos portugueses, Juntou-se a isto o prometido milagre do PS: os socialistas teriam encontrado a mágica fórmula para, poupando aqui e acolá, garantirem que reformados e funcionários públicos poderiam perder apenas um dos dois subsídios (férias e Natal).
Nessa altura, já o ubíquo ministro Miguel Relvas aplaudia o esforço socialista, abrindo na estremunhada alma dos indígemas uma janela de esperança. Passos Coelho e o ministro das Finanças trataram de desfazer o sonho. Em palavras, porque em actos lembraram-nos o pior que a política tem: o que hoje é verdade, amanhã pode bem ser mentira (peço licença a Pimenta Machado, ex-presidente do Vitória de Guimarães, para usar tão sábia expressão).
O resultado é este: ficámos a saber que o Governo em que precisamos de confiar (quase) de olhos vendados não é, infelizmente, confiável. A atitude do Executivo legitima a pergunta: se, afinal, era possível poupar 160 mil portugeses aos cortes, por que razão não se fez logo isso? O Governo quis, tacticamente, guardar uma almofada para fazer um bonito no fecho da discussão do Orçamento do Estado? E quem se digna explicar-nos, com cuidado e contas certas, por que foi rejeitada a proposta do PS?
O ministro das Finanças pediu ontem que nos mantenhamos "unidos e solidários", de modo a que, num futuro que não se vislumbra, Portugal possa vir a ser um "orgulho" para nós e um "exemplo" para os forasteiros. Esta conversa do oásis que nos espera não bate certo com a retórica que nos oferecem: não se constrói um futuro risonho, para usar a linha de pensamento de Vítor Gaspar, sem confiança em quem nos governa. E essa, parece-me, acabar de sofrer um abanão.
Paulo Ferreira
Jornal de Notícias
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